Dando continuidade ao artigo "Evolução e cuidados com as Kveiks", vamos abordar um assunto que é temido pelos cervejeiros: A contaminação do nosso precioso produto. Quem já passou por esse problema sabe como dói o coração e no bolso.
A contaminação por
meio dos micro-organismos durante a produção da cerveja pode provocar efeitos
irreversíveis. Aqui se destacam as bactérias e leveduras que são os
micro-organismos contaminantes usuais,
produzindo substâncias químicas inadequadas e que podem inibir o crescimento da Saccharomyces sp. deixando nosso
precioso produto muito fora do desejado.
Só para iniciar a nossa discussão, em uma análise feita em latinhas de bebidas mostrou que 93,5% delas estavam contaminadas externamente por bactérias e/ou fungos. Em uma delas, por exemplo, foram encontradas 12 mil bactérias e 2,6 mil fungos. Em outra, 45 mil bactérias e 9,7 mil fungos. Para ler o artigo inteiro, clique [aqui].
Micro-organismos contaminantes do ar sobre as latinhas
Fonte: Clique [aqui]
Na produção da cerveja, o tipo de deterioração e os microrganismos responsáveis são influenciados pelo estágio do processo, sendo que o mosto um pouco antes da fermentação é um meio rico para o desenvolvimento desses deteriorantes. Outras fontes de contaminação são as matérias-primas, ar, água de fermentação, aditivos, equipamentos e a própria levedura. A levedura e equipamentos utilizados após a fervura do mosto tornam-se grandes vilões nos processos de fabricação porque entram em contato com um mosto em condições de vida microbiana.
Aqui temos um grande problema. Os processos e manipulação das Kveiks estão fora da normalidade de higienização, não existindo uma padronização dos processos, principalmente quando envolve a secagem da levedura. Cada um faz do seu jeito, cada um contamina sua cultura de forma diferenciada e até consegue, por enquanto, produzir cerveja boa com elas.
Essa
é uma "bomba" que pode explodir a qualquer momento. Os processos
metabólicos das leveduras podem ser retardados por fatores distintos ou se
manifestarem rapidamente, gerando um grande problema quanto à disseminação de
iscas contaminadas.
É bom registrar que estou falando de contaminadas e não "modificadas" pela seleção natural que estão passando devido à sua utilização em ambientes distintos daqueles originais.
Para nossa
felicidade, a cerveja é um caso à parte. Ela sofre contaminações por bactérias,
como outros alimentos, mas essas bactérias geralmente não provocam mal à saúde,
porque aquelas que crescem na cerveja, geralmente, não são agentes patogênicos capazes de
produzirem doenças em seus hospedeiros.
É bom lembrar que muitas das bactérias são boas para a nossa saúde como os lactobacilos que agem diretamente sobre o trato gastrointestinal inibindo a proliferação de bactérias prejudiciais, além de reconstruir a parede intestinal, permitindo a correta absorção dos nutrientes essenciais para um organismo saudável. Também podem melhorar e regular todo o funcionamento da flora intestinal, além de combater as substâncias tóxicas causadoras do câncer.
Algumas bactérias oportunistas podem colonizar a nossa cerveja. A sorte é que a maioria não sobrevive ao meio alcoólico, de baixo pH e na presença de lúpulo. Desta forma, as bactérias que crescem na cerveja podem de maneira generalizada influenciar negativamente a bebida apenas nos aspectos sensoriais, ou seja, sabor azedo como vinagre, aroma de podre, aparência turva, pouca espuma entre outros.
Querer uma higienização
perfeita nos processos dos cervejeiros caseiros é demais, entretanto, temos que
tomar todas as providências para evitar, ao máximo, contaminações. Aqui chamo
mais uma vez a atenção para as leveduras Kveiks, porque muita gente acha que
ela é superdotada, super-resistente e incapaz de sofrer contaminações já que na
Noruega ficam no ambiente para secar. Esse é um problema conceitual que já
discutimos no artigo "Evolução e cuidados com as Kveiks", clique
[aqui] para ler.
Existem várias bactérias que são contaminantes comuns da nossa cerveja, além das leveduras nativas oportunistas. As bactérias mais comuns são as anaeróbias facultativas como as Lactobacillus spp e Pediococcus spp, que representam cerca de 70% das contaminações. Outras são as Megasphaera e Pectinatus, também anaeróbias (SAKAMOTO & KONINGS, 2003).
Como detectar se sua cerveja está contaminada? Podemos observar 3 critérios: Aroma, sabor e transparência/particulados. Vamos a alguns exemplos: (SAKAMOTO & KONINGS, 2003 e OLIVEIRA et al., 2010).
Bactérias:
Cerveja turva, com elevada acidez (fora do esperado) e podendo ter desagradável sabor de manteiga - Lactobacillus spp. ou Pediococcus
spp.
Cerveja com cheiro de ovo podre ou odor fecal - Pectinatus spp., Megasphaera spp. e Acetobacter
Cerveja com sabor de vinagre, alteração do gás e viscosidade, principalmente aquelas envasadas em recipientes plásticos - Gluconobacter spp. e Acetobacter
OBS:
Zymomonas spp. É um grupo
de espécies que produz etanol e pequenas quantidades de lactato, ácido acético,
glicerol, acetoína, dihidroxicetona, sorbitol, manitol, ácido glicônico e
acetaldeído. Essa bactéria causa turvação, produz sulfeto de hidrogênio (H2S
que provoca aroma de ovo podre, fósforo queimado ou enxofre) e acetaldeído (aroma de maçã verde) que podem ser indesejáveis na
cerveja. É mais comum em cervejas que utilizam a adição de açúcar em sua
fórmula sob a forma de adjuntos. A presença está relacionada a contaminações
provenientes do ambiente. Fermenta utilizando glicose, frutose e sacarose e podem ser consideradas
umas das melhores bactérias produtoras de etanol a partir de fontes como
glicose e frutose. É uma bactéria resistente ao lúpulo e pode se multiplicar em
cervejas com pH acima de 3,4 (LANGONE, 2012).
Em pesquisas laboratoriais realizadas detectamos bactérias do gênero Zymomonas em iscas doadas da variedade Voss (não foi identificado o doador). Testes de produção com essa isca mostrou acentuado cítrico e cheiro de enxofre.
Bolores e Leveduras
A cerveja pode ser
contaminada com bolores dos gêneros Fusarium
spp. Aspergillus spp. Penicillium spp. Rhizopus spp. e leveduras selvagens que crescem em pH baixo. Os
bolores podem contaminar a cerveja através dos esporos que são transportados pelo
ar. As leveduras selvagens podem contaminar a cerveja ocasionando turbidez,
odores e sabores indesejáveis, além de criar uma espécie de película na
superfície da cerveja (biofilme). A levedura comumente encontrada nesses casos é a Brettanomyces spp. (SOUZA & FAVERO,
2017).
Contaminação por Brettanomyces
spp.
Película com aparência viscosa, com bolhas grandes, filme muito visível.
Fonte:
https://homebrewxp.wordpress.com/2019/05/28/contaminou/
As leveduras contaminantes são pertencentes em dois grupos: as do gênero Saccharomyces e as não Saccharomyces (Brettanomyces, Debaryomyces, Filobasidium, Zygosaccharomyces, entre outros). Entre as leveduras selvagens a Saccharomyces diastaticus é a que representa o maior risco de contaminação, devido à sua similaridade fisiológica e morfológica com o nosso fermento cervejeiro, a levedura S. cerevisiae (LATORRE, 2016).
Fungos oportunistas (manchas escuras na superfície do mosto)
Fonte: https://homebrewxp.wordpress.com/2019/05/28/contaminou/
As leveduras Brettanomyces spp. são encontradas no meio ambiente, solo, frutas, flores. Possuem a capacidade de sobreviver longos períodos de tempo no ambiente e de iniciar o crescimento em produtos em armazenamento. De crescimento lento, depende de fontes de carbono específicas (glicose, frutose, galactose, sacarose, maltose e trealose). São produtoras de grande quantidade de ácido acético e essa característica atrapalha o crescimento das leveduras do gênero Saccharomyces sp (PEDRO, 2014). São fermentadoras de dextrinas, e a produção de ácido acético ocorre a partir da glicose. Pode também formar alguns compostos fenólicos fornecendo sabores indesejáveis que são produzidos por enzimas específicas (ROCHA et al, 2004).
Recentemente um cervejeiro caseiro nos enviou 2 garrafas de cerveja fermentadas com Hornindal Kveik para serem analisadas. As duas apresentaram sabor cítrico de vinagre com aroma forte e agressivo de laranja. Como fez priming, conseguimos coletar a lama da garrafa e replicamos em laboratório obtendo levedura suficiente para inocular 7 litros de mosto feito com 1 Kg de DME. Após fermentação no ambiente (25 a 30ºC), a cerveja pronta apresentou péssimo aroma e sabor repetindo os padrões da cerveja analisada. A cultura evidenciou predominância de Brettanomyces em relação a Saccharomyces.
Dai vem a preocupação que originou esses dois artigos: Se fosse utilizado essa "levedura" para doação, outros estariam tendo problemas na produção de sua cerveja e poderia culpar a Kveik ao invés da contaminação. Essa é uma "bomba" que pode explodir a qualquer momento devido, principalmente, à contaminação progressiva pelo ar durante o processo de secagem das Kveiks.
Mais uma vez venho mostrar a preocupação com o acervo de leveduras Kveiks no Brasil e no mundo. Como não sabemos o nível de contaminação em cada variedade, sugiro cuidados na manipulação/secagem/acondicionamento das iscas. Só doe iscas depois da certeza que sua cerveja ficou dentro do esperado (embora isso não quer dizer que sua levedura não está contaminada, apenas os possíveis contaminantes ainda não se manifestaram). Um cervejeiro caseiro, apenas pode observar o resultado, portanto, qualquer alteração na sua cerveja descarte a levedura e reinicie o processo com outras amostras, além de comunicar quem lhe doou a isca.
Não faço análise de cerveja. Não tenho estrutura e nem licença para isso. Apenas posso usar culturas para estudos científicos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LATORRE, MAILÉN A. Incidencia de contaminantes microbianos en cervezas
artesanales embotelladas de la Patagonia Andina. Trabalho de Conclusão de Curso.
Universidad Nacional del Comahue Centro Regional Universitario Bariloche. 2016
OLIVEIRA, DORINI LUIZ ANDRE; JUNIOR, SANTOS VITORINO; LIOTTI, GRAZIELA
RHAVENA; ZILIOLI, ESTEVÃO; SPINOSA, APARECIDA WILMA; RIBEIRO-PAES, TADEU JOÃO.
Estudo de bactérias do gênero Gluconobacter:
isolamento, purificação, identificação fenotípica e molecular. Ciênc.
Tecnol. Aliment. Campinas, 30(1): 106-112, jan.-mar. 2010.
PEDRO, DIANA NASCIMENTO SÍLVIA. Quantificação de leveduras do género Brettanomyces/Dekkera em Vinhos de Qualidade. Dissertação apresentada à Escola
Superior Agrária de Bragança para obtenção do Grau de Mestre em Qualidade e
Segurança Alimentar. Instituto politécnico de Bragança. Página 5. 2014
ROCHA, C. D.1; SCHMIDT, H. J.2; MONTEIRO, C.3; ODEBRECHT, E.3.
Deterioração de refrigerantes por leveduras. Visão Acadêmica, Curitiba, v. 5,
n. 2, p. 95-100, Jul.- Dez./2004 - ISSN: 1518-5192
SAKAMOTO KANTA, KONINGS AND WIL N. Beer
spoilage bacteria and hop resistance. International. Journal
of Food Microbiology 89, 105– 124, 2003.
SOUZA, DE SANTOS ROSENILDA; FAVERO, MATOS DIEGO. Correlação entre a
redução da carga microbiológica e a inativação da enzima invertase na etapa de
pasteurização da cerveja. Revista Mundi Meio Ambiente e Agrárias.
Curitiba, PR, v. 2, n. 1, 15, jan./jun., 2017.
Para quem quiser aprofundar no estudo sobre bactérias,
sugiro uma lida no meu livro [clique aqui]
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