Evolução e cuidados com as Kveiks

Uma vez uma professora do meu curso de Ciências Biológicas pediu para analisar a frase: "Crescer não é evoluir, crescer é ficar maior. Evoluir é ficar melhor". Logo verifiquei que ela não está correta. Evoluir, biologicamente, não é ficar melhor, é estar adequado às condições ambientais. Muitas vezes, dependendo do ponto de vista, a evolução pode ser melhor ou pior. O aparecimento de bactérias resistentes é pior para os seres humanos, mas é ótimo para as bactérias resistentes.

Para entender onde quero chegar, precisamos discutir um pouco o processo evolutivo e a seleção natural.

A seleção natural é um dos mecanismos fundamentais da evolução. Essa teoria evolutiva foi formulada pelo naturalista Charles Robert Darwin (1809-1882) e consiste na afirmação de que as características vantajosas de uma população para um determinado ambiente são selecionadas e contribuem para a adaptação e sobrevivência das espécies.

Darwin propôs que haveria uma luta pela sobrevivência e que os mais aptos teriam mais chance de sobreviver. Desta forma, os que conseguiam chegar à idade reprodutiva passavam suas características aos seus descendentes. Ele chamou esse processo de seleção natural.

 

Vale destacar que não é o mais forte que sobrevive, e sim o mais apto. Isso quer dizer que aqueles que possuem características favoráveis para sobreviver em um determinado ambiente conseguem reproduzir-se melhor e passar suas características aos seus descendentes. Com a combinação gênica de pais adaptados, novas gerações surgem e são submetidos à seleção natural. Com o tempo, características desfavoráveis ou não importantes vão desaparecendo e novas características surgem, principalmente por mutações que ocorrem ao acaso. Essas mutações geralmente provocam pequenas alterações no código genético que passarão pelo processo contínuo de seleção natural, eliminando  as mutações inadequadas e favorecendo as mais adaptadas para o ambiente. 

 

Um exemplo simples: Em uma população hipotética de bactérias pode existir bactérias com vários níveis de resistência a antibióticos (níveis 1 a 4). Se colocarmos no ambiente onde vivem essas bactérias um antibiótico nível 2, ele matará as variedades 1 e 2, sobrevivendo as variedades 3 e 4 que passam a se reproduzir gerando uma população de bactérias resistentes ao antibiótico nível 2.



No caso das leveduras Kveiks, aquelas mais adaptadas para o ambiente (principalmente um novo ambiente como o do Brasil) da mesma forma que aconteceu na Noruega, deverão ser selecionadas, mas essas mais adaptadas ao nosso clima serão ótimas para fazer a nossa cerveja? Esse é um grande desafio que teremos que analisar e resolver com o tempo. 


Outro fator importante na evolução é a seleção artificial. Ela é o processo de cruzamentos conduzido pelo ser humano com o objetivo de selecionar características desejáveis em seres vivos. Estas características podem ser, por exemplo, um aumento da produção de carne, leite, lã, seda, frutas e até nas nossas leveduras cervejeiras.

 

Podemos registrar que a variabilidade gênica em uma população é gerada pela recombinação genética durante a reprodução e das mutações que ocorrem ao acaso.


Essa revisão básica de conceitos é fundamental para iniciarmos a discussão sobre origem, variedades e possíveis contaminações nas nossas Kveiks.

Ainda preciso do conceito de isolamento geográfico, que é um dos principais fatores que garantem a especiação (originar novas espécies). O isolamento de indivíduos de mesma população em dois grupos isolados geograficamente evita a troca de características genéticas entre os dois grupos separados, permitindo apenas a reprodução daqueles que estão acessíveis (no mesmo grupo). Com o passar do tempo, o ambiente seleciona os mais adaptáveis de cada isolamento, podendo formar indivíduos geneticamente incompatíveis quanto à reprodução, surgindo novas espécies.

Agora a nossa discussão.

Provavelmente as leveduras que fermentaram as primeiras cervejas e que ninguém sabia da sua existência, eram de uma mesma população e foram difundidas com a migração humana e chegaram a todos ambientes possíveis de ocupação humana, até em locais com ambientes extremos e de difícil acesso como a Noruega.

O isolamento geográfico da Saccharomyces cerevisiae que ocorreu na Noruega não teve um tempo suficiente para gerar especiação, apenas garantiu a seleção de características exclusivas que são as Kveiks que utilizamos hoje. Portanto, as Kveiks são variedades adaptadas ao clima da Noruega e que foram recentemente descobertas (década de 80) e difundidas pelo mundo devido a sua propriedade de fermentar em altas temperaturas sem gerar aromas e sabores indesejáveis.

Como é de se esperar, agora essas variedades estão sendo selecionadas as mais adaptadas ao ambiente quente e úmido do Brasil e em várias partes do mundo, portanto, novos isolamentos com imprevisíveis futuros.

Abaixo é mostrada a comparação de temperaturas máximas e mínimas da capital da Noruega e da capital do Brasil. Observe que a temperatura média de verão (18,5ºC) em Oslo (e que não é a região mais fria da Noruega) é menor que a temperatura média de inverno em Brasília (19ºC) (lembrem que determinadas regiões do Brasil as amplitudes térmicas são muito maiores).

Fonte: Google (Adaptado)

É importante sempre lembrar que não podemos comparar a utilização das Kveiks no Brasil com os procedimentos na Noruega, os climas são muito diferentes. Então temos que definir procedimentos adequados à nova realidade para essas leveduras ou poderemos, em breve, ter populações muito diferentes das originais.

 

Algumas considerações devem ser discutidas:

1- Na Noruega apenas a inoculação era feita em temperaturas altas, facilitando os processos de produção de cervejas. Toda fermentação acompanhava a temperatura ambiental, portanto, baixa.

2- A utilização dos anéis de kveik deve ser descartada no Brasil. Nosso clima quente e úmido possui gigantescas variedades de esporos de fungos nativos e bactérias oportunistas que, facilmente teriam acesso a essa fonte de alimento.

3- A facilidade de manipulação das kveiks devido a sua capacidade de secar e simplificar a distribuição de iscas, bem como a taxa de inoculação ser pequena, é um problema sério porque muitas pessoas, sem qualquer cuidado, podem estar gerando misturas de variedades com contaminações diversas.

4- Como existem procedimentos de manipulação das kveiks bem distintas, as contaminações das variedades distribuídas no Brasil e no mundo devem estar acontecendo de forma acelerada, produzindo culturas que podem fugir muito do padrão esperado. Isso pode explicar resultados diferentes em brassagens similares.

5- Um dos principais procedimentos contaminantes é a secagem da levedura. Deixar exposta ao ambiente durante horas e até dias pode ser um convite aos esporos de leveduras nativas, bem como para determinadas bactérias. Esses micro-organismos oportunistas podem, em número pequeno de indivíduos, não demonstrarem todo o seu potencial, mas quando em ambiente nutritivo como o mosto, podem, de forma variada, apresentar suas "garras".

5- Discussões devem acontecer visando estabelecer critérios para melhor desenvolvimento da cultura kveik ou teremos em breve sérios problemas com o desânimo de muitos por não conseguirem bons resultados com leveduras contaminadas ou muito modificadas.

6- Para iniciar essa discussão proponho duas iniciativas:

6.1- Todos que receberam iscas por doação façam uma propagação e um teste de produção de cerveja. Se seu procedimento foi normal na produção e caso obtenha qualquer resultado inesperado após a fermentação, descarte a levedura. Não passe para frente esse lote, recomece com outra isca. Alerte a pessoa que lhe forneceu a isca.

6.2- Se você pretende doar iscas, tome muito cuidado com o seu procedimento. Evite ao máximo expor a sua levedura ao ambiente. Tente fazer a secagem, mesmo que leve mais tempo, em local higienizado e protegido. Atualmente algumas pessoas usam caixas com filtros (procure no YouTube) pode ser uma forma de diminuir a contaminação.

Espero ter iniciado uma discussão sobre o assunto, tendo como objetivo básico melhorar o desenvolvimento da cultura Kveik.

No próximo artigo  continuo a discussão evidenciando os principais contaminantes da nossa cerveja. Clique [aqui]

Bibliografia sugerida:

Para quem gosta do assunto evolução, sugiro uma leitura no meu livro "Charles Darwin, o homem e sua teoria". Clique [aqui].

Nesse site também pode ser encontrado: Artigo sobre a origem das Kveiks. Clique [aqui] e um específico sobre a reprodução. Clique [aqui].

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(clique aqui)


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